Ontem foi a gota d'água. Veio justamente de onde eu jamais poderia imaginar: – Senhor Milton, por favor, leia a escritura e, se de acordo, assine seu nome por extenso na linha “Comprador”. É esse rigor dos escrivães que me faz confiar em Cartório de Notas: tem que rubricar todas as folhas no canto inferior direito, eliminar as linhas em branco de cada folha com um traço diagonal, verificar se entre a data e o final do texto existe espaço suficiente para adicionar algum comentário apócrifo, e assinar um enorme e pesado livro preto, o que, na minha idade, é arriscado. – Senhor João (com vontade de chamá-lo de José), acho que está tudo certo, apenas meu nome deverá ser alterado de Milton para Nilton! – Com il ou com ew? – Arrrgh!!! E ainda me exigiram cópia de RG, CPF e mais mil e quinhentos reais. Para ser justo, não devo jogar sobre os ombros do criterioso João toda a responsabilidade sobre minha decisão e suas consequências. Resolvi, então, seguir as orientações do meu cardiologista e do Fantástico: elimine o estresse da sua vida e viva melhor! Ainda mais que já consta um enfarto no meu currículo de cardiopata. Esse negócio de trocarem “Nilton” por “Milton” vem de longe. Na maioria das vezes, na segunda ou terceira repetição, com um tom mais alto, a pessoa reproduz com perfeição: – Nilton! O que aborrece também é o ar de superioridade da pessoa, o que revela condescendência pela minha suposta má dicção. No meu entendimento, deveria considerar seu grau de surdez! Já consultei fonoaudióloga sim, está tudo bem comigo. Diante do meu aborrecimento com a situação, a especialista tentou me consolar: explicou que foneticamente, pela lei do menor esforço, a pessoa troca “Nilton” por “Milton”, por ser mais fácil pronunciar fonemas bilabiais do que os linguodentais. Senti-me um pouco mais confortável (os outros é que estavam errados!). Mas o estresse continuava e as pessoas mais carinhosas chamavam-me Miltinho! Para ser honesto, tenho que excluir Dª Luzia das razões do meu estresse. Em virtude de casamentos ocorridos, faz parte da família, ainda que de forma oblíqua. É uma estimada senhora que há algum tempo comemorou seus setenta anos. Lembro-me bem, pois nesse aniversário sua dentadura frouxa voou sobre as velinhas do bolo, destruindo-as. Claro que a parte central do bolo sobrou. Não houve grandes constrangimentos porque quase todos eram de casa. Apenas uma das três amigas que estavam lá não parou de rir até o final do aniversário. Alzheimer? Um bisneto de cinco anos desandou a chorar, acusando a “bisa” de ter cuspido no bolo dele! Durante um bom tempo tentei provar para Dª Luzia que meu nome era Nilton. Simplesmente ignorava minhas observações e continuava a me chamar Milton. Devido a profundidade do meu trauma, nem a idade e nem a surdez dela eram suficientes para aplacar meu estresse. Entretanto, um fator foi determinante para considerá-la "amiga": a assertividade com que me chamava Milton. Com personalidade forte e voz determinada, pronunciava Milton quase como imposição, olhando firme nos meus olhos quando falava. Algumas vezes chegou a me balançar, deixando-me em dúvida quanto ao meu verdadeiro nome. Capitulei. Passei a me considerar Milton, exclusivamente para Dª Luzia. Até sorria carinhosamente. As pessoas mais chegadas se preocupavam e tentavam me ajudar. Minha mulher, por exemplo, sugeriu que eu adotasse um símbolo no lugar do meu nome como fez o Prince. Poderia ser um símbolo hindu, japonês, budista, desde que representasse qualquer coisa como Paz, Felicidade, Equilíbrio, Harmonia. Para falar comigo, as pessoas precisariam, tão somente, riscar a silhueta do meu símbolo no ar, como fazia aquela mocinha do “Itaú”. Não tinha erro! Pensei em algo recente que seria motivo para que ela estivesse se vingando, mas eu estava “limpo”. Como ela é chegada a um Feng Shui, acabei por acreditar na sua boa intenção, mas achei a idéia muito radical... Um amigo, eterno gozador, deu a idéia para que eu entrasse para o mundo dos surdos e mudos. Os outros teriam que se virar para aprender a língua dos sinais — LIBRAS — Lingua Brasileira de Sinais. Até lá eu teria um bom período de paz. Sim, porque quando aprendessem, haveria o risco de algum calouro trocar o “N” pelo “M”! Seria pior: além da continuação do estresse, agora na condição de surdo e mudo, teria que xingá-lo na língua dos sinais, o que, definitivamente, não satisfaria. Outro entrave seria o relacionamento com minha mulher, no caso de uma pequena briga. Como todos sabem, ficar calado numa discussão, pode ser interpretado como deboche ou provocação. Nessas situações é mais sensato responder monossilabicamente, de cabeça levemente curvada para baixo, mesmo estando certo! Caso contrário, o silêncio pode ser interpretado como enfrentamento. E se for na fase de TPM, aí há risco de morte. Prepare-se para se desviar dos objetos que serão lançados em sua direção. Uns três metros é uma boa margem de segurança, porque elas não costumam ter boa pontaria nessas situações de desequilíbrio emocional. O mais viável seria a idéia do símbolo! Pelo que eu saiba, Prince não tem tido problemas... Eureca! Se com Dª Luzia eu me tornei um Milton-manso, por que não mudar o meu nome para MILTON, definitivamente? Pelo menos, dos Miltons que conheço, nenhum reclamou de ter sido chamado Nilton, com o plus de mais ninguém perguntar se é com “il” ou “ew”. Eu já estou balançado mesmo, quase que com dupla personalidade... Para os mais próximos a troca do meu nome causou muita confusão, chegando, algumas vezes, a estressá-los. (agora, o problema é deles!) Dos estranhos nunca mais ouvi a pergunta se é com il ou com ew.. Quem não conseguiu se acostumar com a mudança foi minha mulher – muitos anos juntos, chamava-me Nilton, Milton... até o dia em que na cama, chamou-me Ricardo! Ai que dor no peito... Traz meu currículo para atualização! Estará na minha lápide: NILTON E MILTON, ENFIM, SEM ESTRESSE... DESCANSEM EM PAZ... Nilton Deodoro
Enviado por Nilton Deodoro em 13/01/2010
Alterado em 21/02/2019 |