Nilton Deodoro

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ESPERANÇA - (1986)


     Durante os seus setenta e tantos anos, seu Onofre nada conseguiu na vida, a não ser alguns trapos que lhe serviam de roupas, e poucos móveis doados, que limitavam bastante o espaço livre no barraco onde vivia.
     A equação do momento de sua vida podia ser representada assim: aposentadoria por idade, mais salário mínimo, igual à péssima alimentação e barraco na periferia. Ainda que intangível, o único bem que acumulou foi experiência e esta lhe recomendava que aquela seria a melhor hora para garantir-lhe um lugar sentado no trem.
     O despertador às quatro da matina acordou seu Onofre e, de lambuja, os moradores, isto é, ocupantes, de mais três ou quatro barracos contíguos. Caminhada trôpega até a estação, sonolento e doente, sentou-se no banco do trem já em movimento em movimento e observou o amanhecer do dia que se tornava mais presente a cada estação que lhe parecia passar. O nascer do sol começava a colorir a paisagem cinza da madrugada como se fosse um filme. Filme Esperança.
Nascia mais um dia, mais uma esperança no coração de seu Onofre, certo que desta vez, seria atendido no hospital Carlos Chagas.

     O balanço do trem mantinha-o acordado, esperançoso. Em carne e osso - mais osso do que carne - seu Onofre era a prova semiviva de que enquanto há vida, há esperança. No seu caso, o inverso. O som ritmado das rodas nos dos trilhos contrastava com as batidas descompassadas do seu coração. Resignado, ele compreendia que a culpa não era dos funcionários. Da primeira vez, foi a greve por melhores salários. Da segunda, chegou justamente no horário da troca de equipe. Após uma hora – vestir o jaleco, aquele cafezinho, o papo sobre futebol, política ... trocaram-lhe o dia!
     – Hoje não dá mais! As senhas acabaram!
     No outro dia:
     – Hoje também não dá! Estamos sem água e sem verba para carro-pipa.
     Na quarta vez:
     – Seu Onofre, o senhor já vai embora?
     (Já era conhecido no hospital.)
— Vô sim, dona, o doutô que ia me atender teve pobrema no consultório...Faz mal não, amanhã eu volto.

     Enfim, como num jogo de xadrez, ele ainda não tinha conseguido casar todas as possibilidades favoráveis ao xeque-mate.
     Mas hoje, não! Tinha em mãos uma arma infalível, uma carta na manga! Eleições próximas, lá ia ele munido de envelope com carta de recomendação. Estava assinada por político do qual seu Onofre era fiel eleitor, não só pelas grandes promessas para os pobres, como também por gozar do privilégio de, às vezes, fazer fiado sua fezinha no jogo do bicho. O vereador era banqueiro desse jogo.
     E aconteceu! Às onze horas foi atendido pelo Dr. Phillip. Isso sim é que é nome de doutor! Após minucioso exame clínico de cinco minutos, foi fácil concluir que só o Hospital Souza Aguiar teria condições de atendê-lo. Mesmo porque seu plantão terminava ao meio-dia e percebia-se, discretamente afastada, bela moça que a tudo acompanhava, com um leve sorriso e lindas pernas sedutoramente cruzadas.
Dr. Phillip, estagiário simpático, de olhos azuis que contrastavam com o jaleco extremamente branco - desses lavados com sabão contendo o “branco mais branco”, o “branco gigante”, o “branco surpresa” “o branco o cacete a quatro” –, sempre quis ser ator, mas a família não admitia outra profissão que não fosse a de médico.

     Transferência em ambulância nem pensar! Uma delas estava sem gasolina. A outra saíra rapidinho para atender o chefe da manutenção numa pequena mudança de amigo.
     E lá foi seu Onofre para o Souza Aguiar, de trem, compreensivo e resignado, mas ainda com o sentimento de que aquele seria o dia!
     Enfim, o saguão da emergência! O envelope, já não o tinha mais. Talvez lhe faltara forças para mantê-lo entre os dedos, mas no Souza Aguiar não precisa de indicação de vereador-bicheiro. É hospital referência!
     – Chegou andando, não é emergência! Aguarde ali nos bancos, senhor.
     Acho interessante como boa parte das atendentes, talvez pela convivência, têm um pouco de médico e por isso sentem-se aptas a proceder à triagem. Os guardas de segurança, geralmente, também gostam dessa atividade que lhes proporciona a oportunidade para exercer sua autoridade.
     Nos bancos tinha de tudo: maluco, bêbado, mendigo, mutuário do BNH despejado por falta de pagamento, cheiro de urina e até pacientes aguardando atendimento.
     Seu Onofre sentou-se ao lado do bêbado.      Bastante alterado pela ingestão de álcool, pediu emprestado ao Sr. Onofre uns trocados para tomar mais uma, alegando a necessidade de voltar para casa. Não pode atendê-lo, mas o bafo de cachaça funcionou em seu Onofre como amônia em nariz de desmaiado. Foi aquela sacudida, deu a maior levantada!
     Às cinco da tarde estava dentro do elevador que lentamente subia ao segundo andar. Um arremedo de sorriso lhe alterara o semblante, não conseguia esconder seu contentamento. Não, não era porque ia ser atendido: pela primeira vez viajava de elevador.
     Que maravilha! Como deve ser bom morar na cidade grande, pensava.
     – Segundo andar! Cuidado com a porta pantográfica! Berrou o educado ascensorista.
     Seu Onofre estremeceu e voltou à realidade.      Ainda trôpego e doente, agora cansado, encaminharam-no ao atendimento masculino.      Naquele momento era irrelevante em qual setor seria examinado. O que ele cegamente desejava era ser atendido.
     Esperou.
     Não muito. O chefe era novo na equipe e ninguém sabia ainda qual era a dele.
     – Onofre!
     Seu Onofre estremeceu outra vez.
     – Sô eu!
     – Entra, pô!
     Examina aqui, examina ali, ausculta e ordena que fale 33.
     Silêncio...
     – Está surdo, pô!
     – Não, tô fraco!
     Tossir não foi preciso mandar. Era o que seu Onofre fazia muito bem e a todo instante. Foi sua melhor colaboração na anamnese.      
     Cabe aqui uma explicação: Seu Onofre, há vinte anos, trabalhou três meses em Cubatão.
     Como quem acabara de montar um quebra-cabeça, o médico ordenou - ou sentenciou:
     – Pneumologia com esse homem!
     Homem? Mais parecia uma múmia!
     A atendente, talvez, envolvida em seus pensamentos sobre os carnês atrasados ou até por mera distração, pegou-o pelo braço - quase quebra - e o levou ao serviço de Imunologia!
     No caminho chegou a sugerir-lhe o nome de um médico muito bom, para o qual trabalhava como secretária atendente – (em consultório particular não se diz atendente.)
     Sentadinho, porque em pé não se aguentava mesmo, esperava sua vez.
     Talvez por milagre, era o primeiro.      
     O fato de ter de esperar já não o incomodava. Era profissional de fila, quase a mesma coisa que cão de fila, a diferença está na melhor alimentação do cão.
     Mas o doloroso, o humilhante, foi quando seu Onofre escutou o que a atendente cochichou com a outra:
     – Veja só, Rute, Imunologia! Tão magro, deve ser essa tal de AIDS que anda por aí. Você acha ele com jeito de gay?...
     – Velho esquálido sem-vergonha!
     Isto, aos setenta e tantos anos e depois de três meses em Cubatão, era demais!
     Foi atendido.
     Não era para a Pneumologia, tampouco para a Imunologia, era inanição mesmo.
     Deveria, desde o início, ter sido encaminhado ao serviço de restaurante!
     O Sol se pondo por trás da Central do Brasil começava a descolorir mais um dia no Rio e, junto, a esperança de seu Onofre.
     Só a esperança não foi suficiente para mantê-lo vivo.
     Seu coração, como as rodas do trem, estava parado.
     SEU ONOFRE, no corredor do Souza Aguiar.
O trem, na gare da Central do BRASIL!

 
Nilton Deodoro
Enviado por Nilton Deodoro em 15/01/2010
Alterado em 10/08/2018


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