Nilton Deodoro

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MEIA-ENTRADA

     O filme foi bem avaliado pela crítica, embora não de forma unânime, mas atingiu a classificação de três estrelas de média. Se bem me lembro, o “bonequinho” estava batendo palmas, sentado. Com certo entusiasmo, os amigos recomendaram vê-lo.

     Tudo isso, mais a condição de aposentados sempre à procura do que fazer, nos animou a assisti-lo em plena tarde de uma quarta-feira, já que não tínhamos nenhum compromisso naquele dia.

     Minha mulher é daquelas pessoas que parecem nascidas sob o signo do computador de terceira geração - aquela maquininha que foi o maior sucesso de mercado, por sua capacidade de executar diversos programas ao mesmo tempo, pela incrível velocidade em operar dados. Compulsivamente, ela soma tudo que vê: postes (mas com o carro em movimento e ainda me alertando para os perigos do trânsito), barras de grades de casas e seus espaços, palhetas de persianas... O que for passível de ser contado, conta com ela. Os algarismos de qualquer número também não escapam da sua acuidade visual e matemática. Soma-os avidamente e ainda faz a prova dos nove, especialmente os das placas de automóveis. Se a soma der o número que ela gosta, acompanha um gritinho de comemoração.

     Ela é supersticiosa. Acha que terá sorte neste dia, que acontecerá algo de bom, essas coisas...

     Quando lê, segue o mesmo padrão, nada escapa de suas retinas que parecem equipadas com laser.
No supermercado, neutraliza com facilidade a esperteza dos fabricantes. Rapidamente, compara peso e preço dos produtos, escolhendo qual o mais vantajoso, considerando a relação entre eles. No caixa, na hora de passar as compras, por diversas vezes, reclama sobre a divergência entre o valor registrado e o afixado na prateleira.


     Parece que é hiperativa.

     Ao mesmo tempo em que isso me dá certo descanso, é um estímulo para meu comportamento desligado, quando estamos juntos. Ela faz tudo, por nós dois!

     Naquela tarde ociosa, minha sogra, que nos visitava, foi conosco ao cinema. Diante da bilheteria e antes que eu abrisse a boca para pedir “duas inteiras e uma meia”, pois minha sogra já passou dos oitenta, minha mulher, por cima do meu ombro, naquela pose de “papagaio de pirata”, disse para a moça do guichê:
– São duas meias e uma inteira, no total de doze reais, porque hoje é quarta-feira – Leu todas as placas de avisos no salão, inclusive a da promoção do dia!
Como sempre brincamos, era a minha vez de gozá-la, pelo erro no pedido dos ingressos. Novamente, antes que eu abrisse a boca, veio a “bomba”:
– Amor...Agora você também paga meia. Já completou sessenta anos! São duas “meias”, sim!


     Não precisava ser tão contundente nem me chamar de amor para dar esta notícia! Acho que foi para aliviar o petardo...

     Meu Deus! Fui atingido no meu World Trade Center etário!

     Fiquei sem entender seu meio sorriso. Não sei se era de superioridade, vaidade ou pena. Não importa, naquela situação não dava a mínima para isso, como uma virgem que se tornou mulher, senti que ali estava outro homem. A diferença é que a virgem, geralmente, fica feliz com a mudança de status.

     A partir daquele momento, ficou claro que eu estava definitivamente enquadrado como homem de terceira idade.

     Esse negócio de terceira idade é invenção de algum desocupado ou desequilibrado mental ou as duas coisas juntas, que resolveu classificar as pessoas por faixa etária.

     Como agora existe o Dia da Consciência Negra, para mim, aquela quarta-feira, passou a ser o Dia da Consciência do Idoso!

     De repente, meus sonhos mediatos tornaram-se utópicos. Dará tempo? Pergunta que nunca fiz para mim.

     Ah, que saudade da minha época “dimenor”!

     Acho que o meio sorriso dela era de pena mesmo.

     Aos poucos, estou retornando aos cinemas como um acidentado que volta lentamente ao seu dia a dia. Meio abatido, mas retornando...

     Meia-entrada...Meia-entrada...A última vez que lembro de comprar meia-entrada foi no lançamento de um bang-bang com Gary Cooper, jovem!

     Estou considerando seriamente a hipótese de viver numa aldeia indígena ou numa comunidade tibetana. Nesses lugares não existe meia-entrada e, quem sabe, serei um pajé ou um guru.

     Opa, olha mais um sonho aí!

      Mulher, vamos nos divertir! Vamos ao cinema! Chama a minha sogra!
Nilton Deodoro
Enviado por Nilton Deodoro em 20/01/2010
Alterado em 22/03/2015


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