Nilton Deodoro

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PEITO, COXA OU SOBRECOXA? — crônica descritiva.
(Edição revisada)



     Francisco beirava os quarenta e cinco anos e mal sabia ler. Fazia curso supletivo à noite.
     Cabra macho, homem de fibra, veio da Paraíba tentar a sorte nestas plagas do Rio, terra boa de se ganhar dinheiro. É o que lhe disseram.
     Cuidava de sítio (e muito bem) restando-lhe a parte da noite para pavimentar o caminho do seu grande sonho. Fala mansa, sempre muito respeitoso, humilde mesmo, mas tinha seus momentos de pitacos de humor; humor inocente, ingênuo, mas muito engraçado por sinal. E eu adoro humor...
     Na escola, destacava-se, não pela idade maior do que a média da turma, mas pela educação, bondade, sempre pronto a ajudar. Sabia dar jeito em tudo. Forro da sala vazando água da chuva? Chama o seu Francisco... Torneira pingando? Chama o seu Francisco... O que a garotada danificava durante o dia, Francisco consertava à noite.
     Faltava-lhe o dedo anular de uma das mãos. Nunca perguntei como o perdera. Talvez em algum engenho de roça na Paraíba. Para mim, esse detalhe era entrave definitivo para a realização do seu sonho.
     Ah, o sonho... Ser motorista de ônibus! Falava com tanto brilho nos olhos, que, caso conseguisse, não seria motorista, seria piloto!
Vestia-se como estes profissionais. Calça azul-marinho e camisa azul clara. Sapatos e meias pretos.      Era comum viajar gratuitamente em alguns coletivos, uma vez que o identificavam, pelo uniforme, como “colega de volante”.
     Enfim, estava preparado para assumir o posto, quando, e se o Universo resolvesse lhe conceder esta oportunidade.
     A parte que lhe cabia estava pronta: vivia profundamente o sonho, via-se dirigindo um coletivo.      Viajava ali no degrau perto do motorista, observando as manobras e trocando algumas palavras com o “colega”. Sobre a profissão, claro!
     Penso que se imaginava voltando para casa após seu turno, conduzindo um ônibus.
     Pobre Francisco, com a falta daquele dedo; CNH, categoria profissional e de coletivo! ... Sonho mesmo...
     Não tocava nesse assunto, mas sofria por vê-lo viver sonho utópico.
     À noite, estacionava meu carro em frente à escola, aguardando minha esposa, após mais um dia de trabalho. Às vezes dava carona para Francisco até o ponto de ônibus próximo.
     — Dona Hilda, vocês gostariam de passar um domingo no sítio, tomando banho de piscina e comendo churrasco? Sou bom em churrasco de carne-de-sol!
     — Não, Francisco, obrigada, ali é o seu emprego.
     — Não tem problema, Dona Hilda, pedi autorização ao patrão. Tem toda confiança em mim...
     — Bem... Aí é diferente...
     Dia maravilhoso! As crianças jamais o esqueceram. Nós também não. E aprendi que grama inglesa é a melhor para área de lazer. Bem tratada, se entrelaça, formando uma espécie de colchão, próprio para a criançada brincar sem o risco de ferimentos graves.
     Em retribuição, convidamos Francisco, a mulher e filha para almoçarem em nossa casa, no domingo seguinte. Com as dicas da mulher dele, preparamos um baita almoço: galinha caipira assada, caprichada ao molho, farofa de ovo e batatas coradas. Arroz branco, soltinho. Salsa picada espalhada sobre a galinha, depois de assada. Sobremesa? A que mais ele gostava: pavê de biscoito champanhe.
     Estava pronto o banquete!
     Todos à mesa, Francisco meio sem jeito, parecia estar muito feliz. Nós estávamos. Gostávamos muito dele.
     — E aí, Francisco, gostou da surpresa? Galinha caipira assada e pavê, de biscoito champanhe!
     —Gostei muito, Dona Hilda! É o melhor prato para mim e a sobremesa, hummm... Mas não precisava esse trabalho todo, Dona Hilda...
     — Que nada, Francisco, estamos muito contentes por você estar aqui conosco!
     — Então?... Vamos atacar?...(tentando descontrair o ambiente).
Francisco na dele, com as mãos juntas entre os joelhos, sem “coragem” de servir-se, talvez. 
     — Qual pedaço gosta mais, Francisco? Peito, coxa, sobrecoxa... Hilda ofereceu as partes nobres do petisco, no intuito de agradá-lo...
Meio sem jeito, disse que o que ela escolhesse estaria bom.
     — Não senhor! O almoço é seu! Escolha o que mais gosta!
     Com a educação que lhe era peculiar, ainda mais almoçando na casa da professora, soltou, com voz mansa, mas impostada:
     —Olha Dona Hilda, eu gosto mesmo é do SOBRECU...
     Hilda, que ria de tudo, (as tais pessoas ditas de riso frouxo), passou-me a tesoura de destrinchar, pediu licença para ir à cozinha buscar mais um copo, e afastou-se rápido. Enquanto se afastava, ainda deu para vê-la com as bochechas infladas e mão pressionada sobre a boca pronta para explodir...
     Eu, com a tesoura na mão, meio perdido, sem saber o que fazer, olhava fixo para o “sobrecu” da galinha jaz assada, pensando por onde começar a dissecção da “cobertura” do Francisco .
     Os dois filhos mais novos também pediram licença e me abandonaram antes que explodissem em risos. Andrey, o mais sacana dos três, saiu bufando como touro em arena. O de nove anos já havia apreendido algumas boas maneiras, e permanecia à mesa. De cabeça baixa, emitindo sons inaudíveis, como tosse. Sempre foi muito responsável...
     Grande companheiro!

Pela postura dos convidados, penso que ninguém percebeu o real  motivo da repentina movimentação dos presentes...
     Para retomar ao cenário, a única coisa que me ocorreu, foi perguntar ao Francisco como estava o Mengão, mas sem olhar para ele. Se olhasse, seria mais um a pegar copo na cozinha...
     Entretido em separar a parte preferida do Francisco, deu para segurar numa boa... 
     Ele, observando a forma desajeitada como eu manuseava a tesoura, deitou a falar sobre o Mengão...
     Mesmo sendo fluminense, não tive nenhum escrúpulo em balançar a cabeça em sinal de aprovação para tudo que o Francisco falava, seja lá o que tenha dito...
     A situação exigia aquele sacrifício!
Primeiro monólogo sobre futebol!
     Deu certo! Cinco minutos falando sobre o Mengão, nem percebeu que a mesa estava recomposta, com todos socialmente “sorridentes”, felizes com a presença dos convidados.
     O almoço foi o maior sucesso!
     Durante um bom tempo Francisco lembrava o encontro e dizia que eu era flamenguista disfarçado de fluminense e ria...
     Eu também ria, mas lembrando do domingo do almoço com Francisco...
     Como sói acontecer, cada um vai construindo seu caminho, buscando seus sonhos, deixando para trás derrotas, vitórias e grandes amizades... Todas importantes nesse caminhar...
     Entre estupefato e feliz, mais estupefato, incrédulo, do que feliz, na última vez que encontrei Francisco, ele “pilotava” um ônibus do bairro onde vivêramos. E foi ele que me chamou a atenção com a buzina.
     O sorriso, nem preciso falar...
     Nos olhos, o brilho havia se instalado, definitivamente!
     Eu ali na calçada olhando para cima, reconhecendo um vencedor. O Universo dobrou-se à força do querer...
     Segui meu caminho, feliz e emocionado...
     Quem sabe, hoje, está “pilotando” um ônibus interestadual?
     Oxalá!
     Sim, porque para quem sonha não existem limites...
     Que o diga Francisco...



 
Nilton Deodoro
Enviado por Nilton Deodoro em 27/02/2019
Alterado em 12/06/2019


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